quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Súmula Vinculante 35 e os eternos dissabores



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A ideia de dissabor (dis+sabor) vem da construção elementar de um prato estrutural de comida, ao qual não adianta somente adicionar elementos de forma arbitrária e desconexa. O prato de um bom chef (categorizado por seus conhecimentos, técnicas e respeito aos elementos), para que não cause frustação, exige o respeito e obediência a uma técnica e combinação de elementos harmônicos entre si, sendo que o empulhamento descriterioso será de imediato sentido de forma intragável pelo degustador. No caso da jurisprudência (juris+prudência), a perene busca do judiciário em criar pratos instantâneos para alcançar resultados com aparência de sofisticados, faz com que desencontrem os reais elementos do processo penal, e acabem por produzir as conhecidas gororobas, que até são servidas em alguns casos, mas somente por necessidade e oportunidade.

Ao enunciar a Proposta de Súmula Vinculante (PSV 68), que deverá dar origem à Súmula Vinculante de número 35, buscou-se dirimir, segundo a propositura da Procuradoria Geral da República em sua petição inicial, uma controvérsia nos diversos tribunais do País sobre a possibilidade de propositura de ação penal após o descumprimento dos termos de transação penal, o que, ainda segundo a Procuradoria Geral da República, estaria causando grave insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre a questão. Em verdade, se aqui é permitido um primeiro parêntese, talvez a insegurança não fosse jurídica, pois é possível observar que o Estado de Direito Penal Mínimo vem dando ensejos ao punitivismo populista e exacerbado, como resposta às inadimplências individuais, agora não mais reservadas à essencialidade restrita de bens importantes frente a condutas de lesividade concreta.

O Plenário do STF já havia julgado e dado repercussão geral a Recurso Extraordinário (nº. 602.072/RS), no sentido de que não há ofensa aos preceitos constitucionais à retomada da persecução penal em casos de descumprimento das cláusulas de transação penal, contudo, Tribunais inferiores e até o Superior Tribunal de Justiça vêm divergindo desse entendimento. Em relação a que caberia um segundo parêntese: o caso seria vincular por meio de uma súmula a decisão ou, quem sabe, ter posto a reflexão à matéria frente aos embates refletidos pelos Tribunais? 

No entanto, a partir da publicação, o verbete da Súmula Vinculante 35 será da seguinte forma:
“A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”.
A primeira situação que prende a atenção é que a transação penal referida por este verbete é expressa aos casos penais de ação penal de iniciativa pública, isto, pois, somente autoriza ao Ministério Público a continuidade da persecução penal. Ocorre que, por omissão, a matéria toca em um ponto nerval das transações penais: a possibilidade de transação penal nas ações penais de iniciativa privada. Ora, ainda que não exista uma posição em definitivo sobre a possibilidade de transação penal nas ações de iniciativa privada (quem sabe uma súmula de maior interesse jurídico?(!)), é certo que doutrina e jurisprudência, em maior ou menor intensidade, vêm aceitando o referido instituto como um direito subjetivo do autor do fato. Ora, qual o resultado da conotação da nova Súmula Vinculante(?), senão que levará desorientação e tende a fabricar entendimentos de reservar o referido benefício da transação somente às ações de iniciativa pública (indiretamente atacando o debate dos casos da iniciativa privada). Ou seja, uma Súmula de “leve dois e pague um”. 

Enriquecedor foi o debate tido no plenário sobre a referida Súmula que, em que pese a tentativa de salvar e estabelecer o debate sobre o mérito da questão, ficou, quando muito, desde seu início em questões periféricas, repetindo o texto proposto, em sua integralidade, pela Procuradoria Geral da República. 

A segunda situação é sobre a própria ordem da matéria, qual seja: se a transação penal faz coisa julgada material, devendo ser executada pelos meios de direito (ex.: juízo civil nos casos pecuniários), ou seu descumprimento cessaria o acordado e voltar-se-ia ao status quo ante da persecução? Eis o grande equívoco da Súmula Vinculante, senão pelo seu conteúdo, talvez por sua criação precipitada.

Em primeiro, por não trazer um debate sobre o que estão dizendo os Tribunais e doutrinas, uma vez que a própria jurisprudência acostada pela Procuradoria Geral da República é recente e muito bem enfrenta a matéria; e, por segundo, por não partir de um lugar principiológico, no qual debate-se um direito penal mínimo. Frisa-se, o debate sobre a referida súmula em muito traz o exemplo simbólico que a Suprema Corte faz sobre a matéria processual penal, em referências civilistas e preocupado mais com termos do que com a questão de fundo.

Ainda, no mesmo sentido, surge uma observação: o juízo responsável por conhecer do oferecimento da transação penal, em caso de aplicação da Súmula Vinculante 35 tornar-se-ia suspeito? Ainda, poderá o Ministério Público fazer “referência de autoridade” à transação penal (e seu descumprimento) como razões da denúncia? E, nos casos de ação penal de iniciativa privada, poderá o querelante dar continuidade à queixa, assim como autorizada foi a proposta para transação penal? E nos casos de cumprimento parcial da transação penal, como proceder?

Por diversos dissabores, a Súmula Vinculante deverá ser trabalhada arduamente pela doutrina, pois a inevitável presunção de culpa que se forma frente àquele quem acordou pela transação e não a cumpriu (parcial ou integralmente), será um grande debate ao poder simbólico do ato.