segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Judiciário não suporta metade da população litigando




Disponível também em fredericocattani.com.br.


Quando chegou à presidência do maior tribunal regional federal do país, o poeta e ex-advogado Newton De Lucca assumiu um compromisso: ampliar os braços da Justiça para alcançar mais cidadãos e reduzir o estoque de quase meio milhão de processos em segundo grau e 1,6 milhão no primeiro. Em seu discurso de posse no comando do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região, em fevereiro do ano passado, prometeu reforçar o contingente em funções jurisdicionais, nem que fosse preciso acabar com cargos administrativos. Ao encerrar seu primeiro ano como presidente, De Lucca viu o acervo de processos diminuir, mas reconheceu: “O Poder Judiciário não está equipado e não tem infraestrutura para suportar metade da população brasileira”.

Em entrevista concedida em seu gabinete à revista Consultor Jurídico para o Anuário da Justiça Federal 2013, a ser lançado no primeiro semestre deste ano, o presidente comemorou o fato de ter conseguido implantar algumas mudanças que contribuíram para a redução do estoque, mas lamentou não ter conseguido emplacar todas as que queria.

O aporte de funcionários no julgamento de ações foi um exemplo de sucesso, segundo ele. O desembargador deslocou dez servidores dedicados a acompanhar os julgamentos e divulgar as decisões no tribunal e, com eles, criou dois times de "mutirão permanente". Sob a liderança de um juiz cada um, as equipes da Assessoria de Apoio aos Gabinetes socorrem os gabinetes mais atrasados. Em 2012, a meta — atingida, segundo o presidente — foi de 600 processos por equipe, a cada quatro meses de trabalho. "Tirar da frente 4 mil ou 5 mil processos não significa muita coisa em um universo de meio milhão, mas estou fazendo uma coisa lógica, racional, prestando atenção não só em quantidade, mas também em qualidade, porque não adianta varrer sujeira para debaixo do tapete. Esse foi o grande mal de outros mutirões", diz, ao se referir aos recursos que se multiplicaram contra boa parte das decisões fruto de mutirões. 

Apesar dos esforços, o número de processos julgados pelos desembargadores em 2012 foi menor que o do ano anterior — 249 mil contra 267 mil. No entanto, há que se levar em conta que o mutirão do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho da Justiça Federal, em 2011, julgou 90 mil casos graças ao apoio de juízes de primeiro grau. O ano terminou com 476 mil recursos por julgar. Em 2012, andando com as próprias pernas, o TRF-3 reduziu o acervo para 460 mil. A diminuição é o equivalente ao acervo inteiro de um gabinete dos mais abarrotados. É verdade, também, que a demanda caiu. Entraram 173 mil recursos em 2011 e 157 mil no ano passado.

Por exigência da Corregedoria do CJF, foi aprovada a criação de mais uma Seção de julgamento no TRF-3, dedicada a casos criminais. O problema é a composição. Para formá-la, o presidente pretende dividir em duas a 1ª Seção, hoje responsável por julgar matérias cíveis e criminais, e composta por 12 desembargadores.

Nos cálculos de Newton De Lucca, para que a nova seção possa começar a trabalhar, seria necessário convocar 12 juízes. Isso porque, com quatro seções, o TRF mudaria sua configuração: em vez de três turmas de quatro julgadores, seriam quatro turmas com três. O presidente pretende compor as vagas que surgirão com esses juízes convocados.

Só que a estratégia depende de aprovação do CNJ, já que se poderia interpretar que a corte cria novas vagas de desembargador sem determinação legal. "A rigor, não se está criando uma nova seção, mas simplesmente reestruturando uma delas", se defende o presidente.

Em primeiro grau, a situação não é melhor. De acordo com De Lucca, são necessários pelo menos 80 novos juízes para suprir a demanda de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Por isso, pretende abrir, no mínimo, dois concursos em 2013, assim que for resolvida uma briga no CNJ por causa de um concurso já em andamento. 

Desde que ingressou no tribunal pelo quinto constitucional da advocacia, em 1996, Newton De Lucca já passou pelas três seções da casa. Hoje, preside a Comissão de Proteção ao Consumidor no âmbito do comércio eletrônico do Ministério da Justiça e é vice-presidente do Instituto Latino-Americano de Derecho Privado. Doutor em Direito Comercial e livre-docente pela USP, leciona na universidade, onde se formou, desde 1974. Também dá aulas na Universidade Nove de Julho desde 2011. Escreveu seis livros, o último, Da Ética Geral à Ética Empresarial, publicado em 2009.

Entrevista:

ConJur — Em fevereiro, o desembargador completa um ano à frente do tribunal. O que foi feito de mais importantes em sua gestão?
Newton De Lucca — Percebi que era preciso criar um núcleo permanente de apoio aos gabinetes. O nome técnico seria ASSAG – Assessoria de Apoio aos Gabinetes. Eu criei essa assessoria com dez servidores bons, cinco subordinados a um juiz, outros cinco a outro juiz, e decidi que socorreria os gabinetes mais atolados. 

ConJur — Por quê?
Newton De Lucca — No meu discurso de posse, disse que precisávamos trabalhar um pouco mais com a área fim e não tanto com a área meio da Justiça. Era preciso criar um núcleo de apoio aos gabinetes. A celeridade é a grande cobrança que se faz do Poder Judiciário. A grande queixa que existe é a demora na oferta da prestação jurisdicional decorrente do acúmulo de processos. O Conselho Nacional de Justiça estabeleceu metas, criou mutirões. No fim de 2011, foi feito um mutirão no tribunal que foi um sucesso, em parte. No meu gabinete, cheguei a ter 18 mil processos, o que é astronômico. Com o mutirão, junto com o esforço que fiz, entreguei o gabinete com 8,5 mil processos. Percebi que precisava dar apoio a esses gabinetes.

ConJur — O mutirão é uma solução para o acúmulo de processos?
Newton De Lucca — É uma espécie de mal necessário. Para cumprir os ditames da Emenda Constitucional 45, de 2004, que trouxe o princípio da duração razoável do processo, é preciso, de alguma maneira, acelerar a oferta da prestação jurisdicional. Por outro lado, deve-se reconhecer que o Poder Judiciário foi muito acionado a partir da Constituição Federal de 1988. Segundo o CNJ, há mais de 90 milhões de processos. O Judiciário não está equipado e não tem infraestrutura para suportar metade da população brasileira litigando. 

ConJur — O que o tribunal tem feito para amenizar o problema?
Newton De Lucca — Havia a expectativa de abrirmos um concurso público para carreira de apoio — técnicos e analistas judiciários. Fizemos o projeto de lei e receberíamos uma parcela de R$ 8,3 milhões para fazer o concurso. Eu pedi muito apoio aos parlamentares e ao Poder Executivo, até porque isso geraria receita para a União. A inscrição está em torno de R$ 100 e a expectativa é que houvesse 150 mil inscritos. Esse valor é recolhido em GRU, ou seja, vai direto para a União, que arrecadaria provavelmente o dobro do que gastaria. Mas o projeto só passou no fim de dezembro e não tivemos tempo hábil para executá-lo. O dinheiro voltou para a União. 

ConJur — No ano passado, a corte aprovou a criação de mais uma Seção, para julgar exclusivamente casos criminais. Essa foi uma imposição do CJF?
Newton De Lucca — Foi uma exigência muito forte. Não chegou a haver uma norma, mas o corregedor, ministro João Otávio de Noronha, quando esteve no tribunal, disse que era necessário criar essa Seção. Teve cobrança também do Ministério Público. Criamos a 4ª Seção, mas ela ainda não está implementada.

ConJur — O que falta?
Newton De Lucca — Depende de infraestrutura. Preciso da ajuda do CNJ para liberar a convocação de 12 juízes para completar a composição de todas as Turmas. A 4ª Seção foi criada de maneira diferente. Dividimos a 1ª Seção, que é composta por 12 desembargadores. Então, não estamos abrindo uma Seção totalmente nova, mas sim reestruturando uma já existente. A ideia é deixar seis desembargadores na área cível e seis na área criminal. No final, teremos, em vez de três Turmas de quatro desembargadores, quatro Turmas de três.

ConJur — Isso não depende de lei?
Newton De Lucca — Existe um anteprojeto. O CJF aprovou um aumento no número de desembargadores, e isso agora está no STJ, que precisa encaminhar ao Congresso Nacional. Pularíamos de 43 desembargadores, que somos hoje, para 96. Isso é muito mais importante para nós do que a história do aumento do número de tribunais regionais federais, que já está tramitando no Congresso. Esse projeto vai representar muito pouco, porque tiraria os processos de Mato Grosso do Sul da nossa competência, o que equivale a 3% do volume que temos. Dez desembargadores que viessem para cá teriam muito mais eficácia do que esses 3%. 

ConJur — Como essas vagas serão preenchidas? Os desembargadores mais antigos escolhem? Qualquer desembargador pode optar por trocar de Seção?
Newton De Lucca — Será aberto só para a 1ª Seção. Caso contrário, nós teríamos outro problema para administrar. Esse é um ponto bastante delicado, porque alguns desembargadores da 1ª Seção já me adiantaram que não querem ir para a criminal. Mas eu não tenho outra saída. Supondo que eu tenha só dois desembargadores que espontaneamente escolham ir para a área criminal. Como vou fazer com os outros quatro? 

ConJur — Se o desembargador mudar de Seção e levar consigo o acervo, ele continua julgando na antiga competência?
Newton De Lucca — A Resolução 139, do CNJ, estabelecia que, em caso de mudança, o julgador deveria levar seu acervo. Porém, essa resolução criou alguns problemas, principalmente em relação a mudança de competência. Por essa razão, foi editada a Resolução 150, que permitia algumas alternativas. Foi estabelecido que, nos casos em que o julgador sai de um gabinete para ir para outro de competência diferente, ele tem nove meses para receber e julgar a distribuição até atingir o mesmo número de casos que tinha no acervo antigo. O objetivo é garantir que o julgador tenha volume de trabalho igual ao que ele tinha antes da transferência. A nova resolução estabelece que o magistrado deve assumir os processos já constantes no acervo ou receberá uma nova distribuição idêntica ou superior à quantidade de processos da unidade anterior. O problema é que redistribuir processos que estão em outros gabinetes pode abrir margem para distribuição dirigida. Por isso, no TRF-3, aprovamos uma regra que vincula o desembargador ao seu acervo, inclusive em relação a recursos decorrentes, como Embargos e Agravos. 

ConJur — O juiz que demora para julgar os processos e tem um grande acervo deve ser punido? Existe uma maneira de conselhos como o CNJ e o CJF punirem pela demora no processo?
Newton De Lucca — É complicado a gente aferir, com segurança, quando a demora resulta de desleixo e desinteresse. Há indícios e é possível saber, por estatística, quem produz mais e quem produz menos. Mas deve-se ter cuidado. Há certas matérias que podem ser julgadas em quantidade muito maior do que outras.

ConJur — O que foi feito em relação à primeira instância?
Newton De Lucca — Essa foi uma preocupação que eu tive logo nos primeiros dias da minha gestão. Chamei minha juíza auxiliar, Leila Paiva, que conhece muito bem toda a história das Varas e dos Juizados, e criamos dois grupos de trabalho, um em Mato Grosso do Sul e outro em São Paulo, formado por gente experiente, que conhece a história da Justiça Federal, e que teria condição de fazer uma fotografia de toda a 3ª Região. Esses estudos foram feitos e constatei que algumas áreas estavam muito mais desassistidas do que outras. Durante muito tempo não foram critérios técnicos que prevaleceram nas escolhas de locais para novas Varas e Juizados. De uns anos para cá, o CJF estabeleceu um critério para se abrir Varas, como densidade populacional, número de processos, distância de uma localidade a outra, produto interno bruto, ou seja, parâmetros técnicos. Antigamente não era assim.

ConJur — Quais as maiores incongruências?
Newton De Lucca — A maior injustiça histórica que eu consegui corrigir foi na cidade de Limeira (SP), que não tinha nem Vara e nem Juizado. Com a criação da Vara de Limeira, foram tirados da Justiça estadual, no exercício da competência federal delegada, 16 mil processos, o que significa que essa Vara já nasce completamente capenga. Vou ter de começar a trabalhar desde já para uma segunda Vara lá. Remanejei também as Varas de Caraguatatuba (SP) e Franca (SP). Estou trabalhando da seguinte forma: onde tem Vara e não tem Juizado, eu tento instalar um Juizado. Onde tem Juizado e não tem Vara, tento instalar uma Vara. Instalei sete ou oito varas em 2012. Em 2013, pretendo abrir mais nove.

ConJur — Quais foram os esforços do tribunal em métodos alternativos de solução de conflitos?
Newton De Lucca — A central de conciliação é minha “menina dos olhos”, uma de minhas paixões. Onde estou criando Vara e Juizado Especial, quando possível, instalo uma central de conciliação ou pré-processual. Os dois primeiros prêmios que este tribunal recebeu foram dados pelo CNJ pelo trabalho durante o programa “Conciliar é Legal.”

ConJur — Como funciona essa conciliação pré-processual?
Newton De Lucca — É uma conciliação prévia. Usada para tentar evitar que um processo surja. É uma espécie de mediação. Os conselhos de classe, por exemplo, nos mandam cobranças que podem terminar em acordo antes de virarem execuções fiscais. Estamos tendo êxito com esse mecanismo. Na região de Guarulhos (SP), por exemplo, que é uma região muito complicada, atingimos 100% de acordos em casos de desapropriação.

ConJur — O CNJ e o CJF costumam cobrar relatórios estatísticos dos gabinetes, muitas vezes pedindo ambos a mesma informação, em relatórios diferentes. Como o senhor avalia essa situação?
Newton De Lucca — Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que aplaudo todo o esforço que esses órgãos fazem pelo aprimoramento do Poder Judiciário. O problema dos órgãos de controle é que, algumas vezes, no afã de controlar, existe um nível exagerado de exigência de relatórios. A gente nota que há um certo abuso. Eu diria até que há pessoas que tentam fazer do CNJ uma espécie de inocente útil. Muitos, infelizmente, usam os órgãos superiores para exercer pressão — o que é um desvio da finalidade. É preciso racionalizar ao máximo. A existência de controle é necessária, é preciso que haja monitoramento de todas as atividades, o Poder Judiciário tem que ser transparente, porém, não vamos cair no exagero.

ConJur — A lei prevê que cada vara tenha um juiz titular e um substituto. A Justiça Federal da 3ª Região cumpre essa exigência?
Newton De Lucca — Eu teria que responder sim, mas estaria respondendo de maneira incorreta. Há locais totalmente desfalcados.

ConJur — Algum juiz atende duas varas ao mesmo tempo?
Newton De Lucca — Duas varas não, mas há juízes que atendem a Vara e o Juizado Especial Federal.

ConJur — Qual é a demanda de juízes da 3ª Região? 
Newton De Lucca — Em torno de 70 ou 80 juízes. Acredito que, pelo menos, seriam necessários dois ou três concursos, já que a média é de 20 aprovações por concurso.

ConJur — É possível fazer dois concursos em 2013?
Newton De Lucca — Vou tentar. É o único jeito de resolver essa defasagem que é o maior problema desse Tribunal hoje. 

ConJur — O Supremo rejeitou, no início do mês, uma liminar pedida pelo desembargador Theotonio Costa, acusado de corrupção e afastado da corte. Essa decisão põe fim aoprocesso? O Tribunal já pode abrir a vaga de desembargador? 
Newton De Lucca — O Supremo, ao que me consta, realmente julgou os últimos Embargos de Declaração. Então, teria ocorrido efetivamente o trânsito em julgado. Mas só vou poder fazer alguma coisa quando sair publicado no Diário Oficial que a Presidente assinou o ato exonerante. Quem pode exonerá-lo não sou eu, e sim quem o nomeou — a Presidência da República. Quando isso acontecer, eu vou imediatamente preencher essa vaga.

ConJur — O que falta para o TRF-3 aderir ao processo eletrônico?
Newton De Lucca — Esse é um problema muito sério. Existe uma definição do CNJ de que todos os tribunais do país devem aderir ao PJe. Porém, esse sistema é muito bonito na sua concepção teórica, seria uma forma de tentar unificar todo o Poder Judiciário. A ideia é irrecusável. Porém, entre o fazer e o dizer, existe um oceano. Percebo que há uma retórica muito grande. Quando pedimos alguma explicação sobre o seu funcionamento, a resposta é sempre no gerúndio: "estamos fazendo, estamos pensando, estamos aprofundando."

ConJur — Enquanto prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD) havia prometido doar um terreno para a construção de uma nova sede para o TRF-3. O senhor pretende usá-lo? 
Newton De Lucca — Eu desisti dessa questão do Parque do Povo. É uma área sob litígio — há pelo menos quatro ações de usucapião envolvendo o local. Não posso entrar em uma área com esse tipo de problema. Estou brigando muito por outros espaços, mandando ofícios para o Poder Executivo. Consegui o prédio da Rua Peixoto Gomide [travessa da Avenida Paulista, no bairro da Bela Vista, em São Paulo], onde o Ministério da Educação queria se instalar. A ideia inicial era colocar lá as novas Turmas Recursais, mas não vai ser suficiente. Por isso, estou pedindo agora um prédio na Rua Martiniano de Carvalho. Ficaria livre de um aluguel caríssimo na Alameda Rio Claro, de cerca de R$ 400 mil, onde funciona uma parte administrativa. Traria toda a parte administrativa e colocaria no novo prédio.

ConJur — Que mensagem o Supremo passou aos tribunais em relação à forma como ver processos por corrupção ao julgar o caso do mensalão? 
Newton De Lucca — A mensagem que o julgamento do mensalão passou para a população brasileira foi a mais importante. Há ainda um certo preconceito de que as pessoas mais poderosas nunca são punidas, que só ladrão de galinha é que é punido. E o mensalão teve esse aspecto positivo de mostrar para a população que, em se tratando da Justiça, não é bem assim. A Justiça vai analisar e, se achar que deve condenar, condena. Para os tribunais, eu não diria que algo mudará. Talvez a questão do indício de prova frutifique em estudos e discussões. Mas, de maneira geral, e falo como desembargador, a gente sempre procurou se ajustar àquilo que as cortes superiores decidem.

Fonte: Conjur.